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Vivemos num tempo estranho. Todos têm voz, mas quase ninguém escuta.
Todos opinam, mas poucos refletem.
Todos gritam por liberdade, mas poucos a sabem sustentar.
Ligamos a televisão, abrimos um jornal, percorremos as redes sociais e o que vemos é uma avalanche de opiniões, indignações, certezas morais e julgamentos relâmpago. Tudo isto em nome da democracia. Mas será mesmo democracia o que vivemos?
Há algum tempo, dei por mim a inventar uma palavra: democrisia. Uma mistura venenosa de democracia, hipocrisia e autocracia emocional. Uma espécie de regime invisível onde todos têm direito à sua verdade, desde que seja socialmente aceite, ideologicamente segura e emocionalmente confortável para os outros.
Na democrisia, a liberdade de expressão existe… mas só até ofender alguém.
A pluralidade é celebrada… até surgir alguém realmente diferente.
A divergência é permitida… até ser mal interpretada.
A democracia transforma-se, assim, num teatro de aparências onde a moralidade se tornou performativa e a escuta, um recurso escasso.
Não vivemos sob ditaduras clássicas, mas sob uma nova forma de opressão: a vigilância metediça. Uma espécie de censura informal e descentralizada, exercida por milhões de dedos invisíveis, atentos, indignados, sempre prontos a corrigir, denunciar, envergonhar.
Não se trata de liberdade de pensamento. Trata-se da liberdade de confirmar o pensamento dominante. O erro já não é parte do crescimento. É sentença pública. A dúvida, que devia ser o motor da reflexão, é vista como fraqueza. O silêncio, muitas vezes necessário, é interpretado como conivência.
E o mais inquietante é que esta cultura da correção não está apenas “lá fora”. Também se instala “cá dentro”. Vive nas famílias, nas conversas de grupo, nos corredores das escolas, nos espaços de trabalho e até na forma como educamos os nossos filhos. Tenho um dos meus escritórios ao lado de um centro terapêutico. Todos os dias vejo entrar crianças: de mochila às costas, desenhos nas mãos, passos hesitantes. É bonito ver essa preocupação com a saúde emocional desde cedo. Mas há algo que me inquieta: quase nunca vejo adultos. Nunca vi um pai ou uma mãe sair de uma sessão. Nunca vi um adulto a entrar para tratar das suas fraturas emocionais. Será que acreditamos mesmo que uma hora de terapia por semana consegue equilibrar uma vida familiar inteira? Estamos a tentar reparar as crianças, sem tocar nos ambientes que as magoam. E isso é, no mínimo, ingénuo. Nenhuma terapia infantil compensa o silêncio emocional de adultos que nunca aprenderam a sentir. Nenhum processo psicológico individual sobrevive intacto ao ruído constante de casas onde imperam o medo, a comparação e a falta de escuta real.
A verdade é que vivemos num tempo onde o egoísmo se disfarça de autoexpressão e a inveja, de opinião bem-intencionada. Num tempo onde se confunde empoderamento com exibicionismo e liberdade com o direito de corrigir o outro. O sucesso alheio é desconfortável. A felicidade incomoda. E então atacamos. Não com agressividade óbvia, mas com ironia, com conselhos não solicitados, com preocupação encenada. Damos a nossa opinião como quem oferece um presente, quando na verdade se trata apenas de descarregar frustração mal resolvida. A inveja, hoje, já não se confessa. Justifica-se com argumentos. Com verdades pessoais. Com “só estou a dizer isto porque me preocupo”. Mas o que muitas vezes está por trás não é empatia, é ressentimento.
E se tudo isto já bastasse para desenhar um retrato social desafiante, há ainda um ator com um papel decisivo neste enredo: as marcas.
Durante décadas, as marcas limitaram-se a vender produtos ou serviços. Mas hoje, face à necessidade de proximidade ao consumidor, muitas aspiram a mais: querem ser agentes de mudança, espelhos da sociedade, promotoras de causas com impacto real. E essa ambição, quando autêntica, tem um potencial imenso. Já não basta comunicar bem, as marcas sentem a responsabilidade de participar ativamente nas conversas sobre sustentabilidade, inclusão, saúde mental, bem-estar, identidade, justiça emocional. E isso é bonito, é responsável.
Mas o problema não é quererem envolver-se. Pelo contrário. O desafio é saber como fazê-lo com profundidade, escuta e verdade. Porque, se forem apenas estratégias de branding disfarçadas de propósito, corremos o risco de reduzir causas reais a campanhas bem embaladas.
Mas há uma oportunidade transformadora aqui. As marcas, pela sua visibilidade e alcance, têm um poder singular: o de normalizar o que ainda é tabu, o de ampliar vozes que ficam à margem, o de democratizar acessos, o de inspirar mudanças culturais. E podem fazê-lo não por obrigação, mas por convicção. Não para agradar, mas para evoluir em conjunto com a sociedade.
Quando uma marca escolhe comunicar com empatia, não precisa de alinhar com todos os discursos, mas sim criar espaço para diferentes perspetivas. Quando promove inclusão, não tem de fechar-se em códigos morais rígidos, mas sim abrir-se à diversidade autêntica, mesmo quando ela é incómoda, imperfeita ou contrária às expectativas do mercado.
As marcas podem, sim, ser plataformas de liberdade. Mas para isso, é preciso ir além do slogan bonito e do vídeo emocional. É preciso coragem para aceitar a ambiguidade. Para mostrar o que ainda está em construção. Para abraçar a contradição como parte do crescimento coletivo.
Num mundo onde tantas instituições perderam credibilidade, as marcas podem ser faróis, desde que o seu propósito não seja apenas um pilar estratégico, mas um compromisso vivo com a complexidade humana. Desde que não procurem apenas vender uma versão filtrada da realidade, mas contribuir para um ecossistema onde o consumo não exige adesão ideológica, e onde a diferença não é penalizada, mas valorizada.
As marcas podem ser grandes aliadas da democracia. Mas não daquela confortável e previsível, onde todos repetem o que soa bem. Podem ajudar-nos a construir uma democracia viva, plural, barulhenta, onde há espaço para o erro, para o confronto respeitoso, para o desconforto criativo.
Para isso, talvez o maior desafio seja este: trocar a tentação do espetáculo pela escolha da verdade. Humanizar a comunicação não é apenas falar de emoções, é escutar com empatia real. Não é apenas abraçar causas, é aceitar que nem todas cabem num template de campanha.
Ainda vamos a tempo. Tempo de exigir menos marketing de virtude e mais ações com coragem. Tempo de abandonar o politicamente correto como estética e abraçá-lo como ética de escuta e de construção. Tempo de convidar as marcas a serem não gurus morais, mas parceiras no desafio de criar uma sociedade mais honesta, mais consciente e mais livre.
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