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A história mostra-nos uma verdade desconfortável: raramente são as palavras que mudam o mundo. É a forma como elas são contadas. Revoluções não começaram apenas por injustiças. Começaram porque alguém decidiu como narrá-las. Crises não explodiram só por erros. Explodiram porque a informação foi mal enquadrada, exagerada, manipulada ou usada como arma emocional.
E hoje, mais do que nunca, voltamos a brincar com esse fogo diariamente.
Vivemos numa era em que ninguém é verdadeiramente julgado pelo que diz. É julgado pelo excerto que cabe num título. Pelo parágrafo que gera cliques. Pelo enquadramento emocional que antecede qualquer pensamento crítico. A informação deixou de ser um processo de esclarecimento para se tornar um gatilho de reação.
O caso recente envolvendo declarações do Ministro da Educação é apenas mais um sintoma, não a doença. A doença é estrutural.
O que foi dito, no contexto de uma discussão sobre ação social no ensino superior, foi uma reflexão sobre a degradação dos serviços públicos quando estes deixam de ser universais e passam a ser utilizados apenas por quem não tem alternativa. Uma tese discutível, sim. Mas uma tese sobre modelos de gestão pública, não sobre moralidade social. Não sobre pobreza. Não sobre carácter.
O que foi comunicado ao país por alguns meios, incluindo uma estação de televisão estatal, foi outra coisa: uma associação direta entre estudantes carenciados e degradação de espaços. Uma frase amputada do seu contexto, transformada numa acusação moral. Um título que não informava, condenava.
Aqui está a diferença crucial: o que foi dito exigia reflexão - o que foi comunicado exigia indignação.
E a comunicação social escolheu a indignação. E escolha dessa indignação gerou julgamento no povo e até noutros partidos.
Não foi por maldade individual, mas por dependência sistémica. Dependência de cliques, de velocidade, de sobrevivência num mercado onde o silêncio não paga contas e a nuance não viraliza. O problema é que, quando os media trocam contexto por emoção, deixam de ser mediadores da realidade para se tornarem engenheiros da perceção coletiva.
A história está cheia de exemplos disso.
A imprensa sensacionalista do final do século XIX inflamou sentimentos nacionalistas que ajudaram a empurrar países para conflitos armados. A cobertura enviesada de crises financeiras acelerou pânicos que destruíram economias antes mesmo dos fundamentos ruírem. Escândalos políticos foram ampliados até à histeria coletiva, enquanto outros mais graves foram abafados por falta de “interesse mediático”.
Mais recentemente, vimos como a forma de informar sobre armas de destruição maciça contribuiu para guerras baseadas em premissas falsas. Como manchetes alarmistas alimentaram o medo durante crises económicas e sanitárias. Como rumores amplificados pelos media e redes sociais foram suficientes para provocar corridas aos bancos, à gasolina, ao papel higiénico, à irracionalidade coletiva.
Nada disto é novo. O que é novo é a velocidade.
Hoje, um mau titulo percorre o país em minutos. Uma frase fora de contexto chega a milhares antes que o discurso completo seja sequer ouvido. O julgamento antecede o facto. A condenação antecede a explicação. E a correção, quando chega, já não interessa. Não gera cliques. Não provoca emoções fortes. Não vende.
É aqui que a comunicação social falha de forma grave. Não por errar, errar é humano. Mas por incendiar sem responsabilidade. Por saber que um título emocional vai gerar reação, mesmo que distorça a realidade. Por abdicar do dever de esclarecer em nome do dever de captar atenção.
O jornalismo nasceu para informar o cidadão. Hoje, muitas vezes, limita-se a excitar o consumidor.
E uma sociedade excitada é perigosa. Porque uma sociedade excitada reage. Não pensa. Não escuta. Não pondera. Procura culpados rápidos, frases simples, vilões claros. Uma sociedade excitada é fértil para populismos, extremismos e julgamentos sumários. Foi assim no passado, continua a ser assim no presente.
A diferença é que agora chamamos a isso “engagement”.
A comunicação social gosta de se ver como guardiã da democracia. E tem razão, quando cumpre esse papel. Mas quando abdica do contexto, quando transforma reflexão em escândalo, quando reduz complexidade a slogans emocionais, passa de guardiã a aceleradora de caos.
E não, isto não é um apelo à complacência com o poder. É exatamente o contrário. Questionar exige profundidade. Fiscalizar exige rigor. Criticar exige honestidade intelectual. Um mau título não fortalece a democracia, fragiliza-a.
Claro que os políticos também falham. Comunicam mal, falam demais, escolhem palavras infelizes. Mas num ecossistema saudável, o erro é analisado, contextualizado, debatido. Num ecossistema excitado, o erro é explorado, amplificado e explorado até à exaustão.
E nós, leitores, não somos inocentes. Porque partilhamos sem ler. Comentamos sem ouvir. Reagimos sem pensar. A indignação rápida dá-nos uma sensação falsa de virtude. Pensar dá trabalho. Duvidar incomoda. Suspender o julgamento exige maturidade.
Talvez o maior escândalo do nosso tempo não seja o que foi dito por um ministro, um gestor ou um cidadão comum. Seja o facto de aceitarmos viver num espaço público onde o título vale mais do que a verdade e onde o contexto é tratado como dano colateral.
A história ensina-nos que sociedades não colapsam apenas por más decisões. Colapsam quando deixam de distinguir entre facto e narrativa. Entre erro e intenção. Entre informação e manipulação emocional.
O maior perigo não é a desinformação grosseira. É a informação tecnicamente verdadeira, mas emocionalmente distorcida. Aquela que não mente, enquadra.
Porque quando o título manda, a verdade obedece.
E quando a comunicação social escolhe incendiar em vez de esclarecer, não está apenas a falhar o jornalismo, está a brincar com os alicerces da democracia. E a história já nos mostrou, vezes demais, como esse jogo costuma acabar.
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